Eu já comentei em outros posts por aqui o quanto gosto da linha de pensamento do Nassim Taleb. Dos seus livros, já tive a oportunidade de ler A Lógica do Cisne Negro e Anti-frágil. Ainda faltam Iludidos Pelo Acaso, O Leito de Procusto e, o que eu estou lendo agora, Arriscando a Própria Pele.
Eu já havia sido apresentado ao conceito “skin in the game” nas outras obras do Taleb, principalmente em Antifrágil. Mas, ao dedicar uma obra somente ao tema, o autor acaba costurando diversas pontas que foram ficando soltas ao longo das outras obras. Como ele mesmo diz, cada livro novo “sai da costela” de um livro antigo.
O que faz o Taleb ser um dos meus autores preferidos é a capacidade que ele tem de aliar disciplinas tão distantes, como filosofia e matemática, em uma narrativa densa, mas ao mesmo tempo leve. Ele tangibiliza seus princípios através de exemplos simples, do nosso cotidiano, sempre recheados de humor, acidez e sabedoria.
Inspirado pelo texto da semana passada, resolvi abordar novamente este tema. Durante toda a leitura que vim fazendo esta semana, consegui enxergar nitidamente os problemas apontados por Taleb naquela polêmica idiota referente Github. Todos os elementos estão lá: pessoas que dão opiniões sem se arriscar; a vontade e necessidade de agradar seus pares, ao invés do cliente; a clara falta de skin in the game de certas pessoas.
Portanto, hoje, quero trazer alguns poucos conceitos apresentados no livro e te convidar a refletir. Leia este artigo e então olhe para o lado e reflita: o quão robustas são as pessoas? O quão robusto você é?
Cirurgiões não devem ter aparência de cirurgiões
“Digamos que você tivesse a opção de escolher entre dois cirurgiões de nível semelhante no mesmo departamento de algum hospital. O primeiro tem aparência refinadíssima: usa óculos de aro prateado, seu corpo é esguio. […] O consultório dele ostenta com alarde diplomas de universidade de elite, tanto de graduação como de especialização. O segundo parece um açougueiro: está acima do peso, tem maos grandes. […] A ausência de diplomas na parede sugere a falta de orgulho em sua educação formal: talvez tenha frequentado alguma faculdadezinha local.”
Esta é uma passagem do livro (p. 191 da 1a. edição). Em qual cirurgião você confiaria sua vida? Segundo Taleb, “passaria por cima da minha tendência a um ser otário e ficaria com o açougueiro, sem titubear”.
Maluco, não? Mas o pensamento do Taleb faz muito sentido. Ele defende que o fato de o cirurgião com má aparência ter alcançado o sucesso indica que ele ele deve ser muito bom. Como isso? Essa informação denota que ele teve que superar o preconceito com sua aparência ao longo de sua carreira. E como fazer isso de forma perene? Sendo muito bom em gerar valor.
Um dos princípios que o Taleb martela ao longo de todo o livro é a importância do uso da via negativa para identificar assimetrias. Ele usa o Código de Hamurabi como exemplo.
A Regra de Ouro é a máxima moral que diz: “Trate os outros como gostaria de ser tratado”. A Regra de Prata diz: “Não trate os outros da forma que não gostaria de ser tratado”. Segundo Taleb, prata vale mais que ouro.
Faz sentido. É muito mais fácil identificar o que é ruim do que o que é bom. Faça um exercício: liste todos os alimentos que você gosta. Agora liste todos os alimentos que você não gosta. A segunda lista é muito mais fácil de ser feita, porque, segundo Taleb, sabemos com muito mais clareza o que é ruim do que é bom.
Portanto, a via negativa é menos propensa a erros do que a via positiva.
Voltando aos cirurgiões… você não tem capacidade técnica para identificar qual dos dois cirurgiões é melhor. Um está tentando te impressionar através das aparências e títulos, o outro não. O fato de ambos estarem no mesmo patamar, mas o segundo não tentar te impressionar, diz muito mais sobre sua capacidade técnica.
Outro ótimo exemplo do autor: habilidosos ladrões provavelmente não possuem aparência de ladrões e estão soltos. Os que possuem, provavelmente estão presos. A liberdade de um ladrão, e por consequência, sua capacidade em não ser pego, diz muito mais sobre sua habilidade como ladrão do que sua aparência.
A mercantilização da virtude
Segundo Taleb, alegar virtude sem viver suas consequências diretas é algo imoral. Mas o que seria “alegar virtude”?
Taleb abre o capítulo em que trata este tema contando uma história sobre uma oportunidade em que uma intelectual (que inclusive, ele admirava) o destratou em meio a uma entrevista de rádio ao descobrir que ele era trader. O motivo foi que ela era “contra a economia de mercado”.
Anos depois essa pessoa faleceu e, então, vieram a tona diversos fatos sobre a pessoa e sua personalidade. Coisas como o fato de ela ter praticamente extorquido sua editora em prol de um contrato de milhares de dólares, ou então o fato de morar em uma mansão de 28 milhões de dólares.
Ao ser contra a economia de mercado, mas usufruir de todos os benefícios que uma economia de mercado pode trazer, esta pessoa não só não está arriscando sua própria pele. Ela está sinalizando falsa virtude.
Nessa linha, Taleb cita a hipocrisia de pessoas ricas que sinalizam preocupação com os ditos “privilégios de classe”, mas que nunca lutam contra isso cedendo seu lugar privilegiado. O discurso não condiz com a ação.
“Se sua vida privada entra em conflito com sua opinião intelectual, isso anula suas ideias intelectuais, não sua vida privada”.
Ou, de forma mais sucinta: “Se suas ações privadas não se generalizam, então você não pode ter ideias gerais”.
Quem têm o costume de viajar e se hospedar em hotéis, com certeza já viu um aviso no banheiro que apela para nossa consciência ambiental e pede para que economizemos toalhas, com o objetivo de salvar o planeta.
Será que se o fato de hotel economizar milhares de reais anuais lavando menos toalhas não existisse, estes lindos avisos sinalizando preocupação com o meio ambiente existiriam?
A mensagem do Taleb é que, em resumo, virtude é algo que não se alardeia.
Olhando a nossa volta
Estes são apenas alguns pontos e exemplos deste excelente livro. Os trouxe até você para que você reflita sobre o mundo a sua volta, principalmente o mundo de tecnologia.
Sabe aquele (ou aquela) dev de palco que alardeia que todos devemos colaborar com open-source? O que o fato de ele (ou ela) quase nunca colaborar nos diz?
Sabe aquele programador que escreve um código rebuscado e discute o quanto o usuário é burro por não entender sua solução? Que discute o quanto o gestor é burro por não permitir que ele use uma tecnologia canhão para matar um problema formiga? O que esses fatos dizem nos dizem?
E aquele coleguinha que usa microsserviços sem ter a mínima ideia do porquê, só pra impressionar o outro coleguinha que também não tem a mínima ideia, mas fez uma palestra supimpa sobre os microsserviços, dizendo que este é o futuro?
E aquele colega de trabalho que manja muito, é quase um hacker, mas não sabe trabalhar em equipe e considera todo mundo que pensa diferente dele de burro? Ou o gestor que avalia seu funcionário por suas “características interpessoais”, ao invés de avaliar pelo resultado gerado?
O que todas essas incongruências dizem sobre estas pessoas?
Fica o meu convite: Comece a prestar mais atenção não no que as pessoas falam, mas sim no que as pessoas dizem.